sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O Espírito do Natal

- Faz muito calor. E eu aqui com esse gorro vermelho de lã em cima da cabeça. Estou suando muito, parece até que acabei de molhar os cabelos. Mas não molhei. Estou suado.

- Então tira o gorrinho da cabeça, cara. Pára de reclamar e faz alguma coisa.

- Se eu tirar o gorro da cabeça, o patrão me manda embora, pô.

- Quem foi que te disse isso?

- Foi o que ele mesmo disse pra todo mundo que trabalha aqui. Nessa época do ano tem muita gente querendo emprego, e quem vem trabalhar temporário tem que saber entrar na regra do jogo. E aqui a regra é essa, trabalhar com o gorro do Papai Noel na cabeça, não importa o sol.

- Muito bem, obrigado. Vou seguir meu caminho. Feliz Natal!!! Tomara que o Papai Noel traga bons presentes para compensar o seu suor, pode ficar com o troco.

Então Fabrício saiu do posto de gasolina e dirigiu até o shopping. Que estava muito movimentado.

- É Natal. – disse uma moça apressada que trombou com ele logo na saída do estacionamento – você não pode ficar ai no caminho, tem muita gente passando, estou com pressa. Anda, anda.

E Fabrício foi empurrado para dentro da correnteza de pessoas. Estava ainda meio desnorteado, nem havia pensado onde iria para comprar o presente de sua esposa. E seguiu o fluxo de pessoas que caminhavam aflitas pelos corredores olhando lojas e discutindo promoções.

Estava perdido. Por onde começar a busca? Tantas lojas, tantas opções, e ele acabara de brigar com a mulher sobre dinheiro. Disse que ela gastava demais. E ela disse que ele era pão-duro. Orgulhou-se de que era ele quem colocava o dinheiro em casa e que a mulher só gastava. Ela disse que ia para a casa da mãe dela, que não era obrigada a ouvir desaforos daquela natureza. Agora ele estava no shopping, procurando um presente que apaziguasse os ânimos em casa, afinal de contas, é Natal.

Entrou, por fim, em uma loja muito perfumada. Falou toda a verdade:

- Minha mulher quer sair de casa, preciso de um perfume que seja uma poção do amor para reconquistá-la.

- Sei exatamente o que o senhor precisa. - e mostrou a cestinha de perfumes e sabonetes mais cara da loja.

Fabrício bateu o olho no preço e deu um salto para trás. Pensou, pensou.... E lembrou o que a mulher disse sobre ser pão-duro.

- É muito bonito este arranjo. Vou levar. Coisa cara, coisa boa. Minha mulher vai cair aos meus pés novamente.

- Feliz Natal e boa sorte!

Feliz ficou a vendedora. A comissão daquela venda seria a salvação de seu próprio Natal. Já era dia 20 de dezembro e ainda não comprara nada para sua mãe nem para sua filha, pois a grana estava curta.

Fabrício saiu do shopping e parou com o carro em um semáforo. Um garoto de rua ficou em frente ao carro e fez malabarismos, outro deixou um saquinho de bala. Eram concorrentes. O bem intencionado Fabrício, embebido do espírito natalino, sacou uma nota de R$1,00 e disse aos dois meninos:

- Só tenho isso, é para dividirem, Feliz Natal!!!

Os garotos brigaram pela nota, que se rasgou. Fabrício encostou o carro e foi chamar a atenção dos dois.

- Vocês sabem quanto me custa de trabalho ganhar uma nota dessas? Eu dei pra vocês, mas não foi pra vocês brigarem. Estamos perto do Natal, não quero ver uma coisa dessas. - deu um sopapo em cada moleque, entrou no carro e foi embora.

Dentro do carro:

- Onde é que esse mundo vai parar. Nem no Natal essa gente se respeita. – sentia-se o dono da verdade e um ser repleto de compaixão.

O DIA 24

- Amanhã é o Natal, todos os meus problemas vão se resolver.

Os dias haviam se passado sem que a mulher desse qualquer notícia. Fabrício foi à procura da esposa e, na casa da mãe, ouviu a resposta:

- Você pisa em cima da minha filha e agora quer pedir desculpas em nome do Natal? Você não merece.

- Mas no Natal todos merecemos uma segunda chance. Devemos amar uns aos outros. Veja o que eu trouxe!!

- Você acha que pode nos comprar com presentes caros? - A velha ainda praguejou alguma coisa sobre o comportamento de Fabrício e bateu a porta, indignada.

A esposa estava em casa, fechada no quarto, humilhada pelas palavras ásperas do marido, que lhe jogara na cara o fato dela não trabalhar e viver vida de madame. Ele disse ainda que ela era interesseira. O que foi a pior das agressões.

Fabrício passou o dia buscando respostas. Foi a uma igreja, rezou e pediu pelo perdão de seus pecados. Não conseguia encontrar sozinho a razão para os sentimentos da mulher, não era capaz de verdadeira compaixão. Foi confessar ao padre:

- Padre Antônio, o senhor me conhece desde pequeno, eu sou um bom rapaz.

- Sim, Fabrício, você sempre foi um menino obediente e temente a Deus.

- Eu briguei com a minha mulher. Ela saiu de casa. E agora estou desesperado. Sozinho em pleno Natal.

- Nunca estamos sozinhos no Natal. É uma época onde todas as almas estão ligadas pela celebração do nascimento de Jesus Cristo, nosso salvador. É uma época de paz e prosperidade.

Fabrício não entendeu direito o que o Padre disse com esse negócio de almas ligadas, paz e prosperidade. Só queria mesmo ganhar de presente de Natal, o retorno da mulher querida.

Já era início da noite, estava de carro e parou no semáforo onde os meninos faziam malabarismo e vendiam balas. Dessa vez, estava ainda mais exaltado:

- Sai pra lá com esse negócio moleque, não estou com paciência para vocês.

- Dá uma ajudinha tio. É Natal.

- Eu tenho coisas mais importantes para me preocupar.

- Ricaço pão-duro. Você vai pro inferno, filho da puta!!!! - um menino que estava na calçada atirou uma pedra na lataria do carro e saiu correndo.

- Ah moleque! Vou te matar. Vou te pegar e comer você vivo, seu bandidinho.

Fabrício desceu do carro e correu atrás do menino, que entrou em um beco.

Entrando pelas ruelas ele viu uma coisa que nunca vira antes em sua vida. As famílias que viviam ali no beco se organizavam em uma espécie de ceia. Todos alegres, como ele deveria estar com sua família. Não teve coragem de seguir na tentativa de agressão ao menino, que se escondeu atrás dos adultos. Fabrício teve medo e voltou para o carro.

- Cambada de vagabundo. E ainda por cima têm um Natal mais feliz que o meu. Isto não é justo.

Foi à polícia dar queixa. Chegando lá foi reconhecido pelo agente plantonista que o vira batendo nos dois moleques uns dias antes.

- Se deu mal, hein, boca boa. Logo no Natal. Vai dar um prejuízo. E ano novo já viu, né: tem que pagar os impostos e as dívidas do ano passado estão acumuladas. Não sei porque todo mundo fica feliz nessa época do ano. Só tem desgraça. – disse o agente

- Eu gosto do Natal, porque as pessoas ficam felizes. Mas este meu Natal está péssimo. Minha mulher brigou comigo e agora esses pivetes amassaram o meu carro.

- Quanto à sua mulher, não posso fazer nada, amigo. Quem sabe você não arruma uma esposa nova pro ano novo? Com relação aos garotos, você quem sabe: ou deixa no elas por elas, em panos quentes, ou terá que responder por agressão a dois menores. Tá ligado?

- Porra cara, ainda essa? Só me dei mal neste Natal.

- Não é uma questão de ser Natal ou qualquer outra época. Se você for um cara sacana, as pessoas serão sacanas com você. A felicidade do Natal é uma coisa artificial. As pessoas se dão presentes e fingem que gostam uma das outras, e fingem que se preocupam com os problemas dos outros, só durante uma única época do ano. O resto do ano inteiro ninguém presta. É briga, é assalto, é filho matando pai, é mulher matando marido, é patrão humilhando empregado. No Natal todo mundo esquece de tudo, é muita fantasia.

- Mas a minha mulher não me perdoou, nem no Natal!!! E eu comprei um presente lindo pra ela.

- Que bom. As pessoas não devem ser compradas. Se você pode comprar alguém no Natal, então só existe hipocrisia. Mas eu não tenho nada a ver com esse seu probleminha conjugal. Eu estou pensando seriamente em buscar aqueles garotos e pedir o depoimento deles sobre a sua agressão. Vai te dar uma boa dor de cabeça, vai precisar de advogado e tem que comparecer às audiências. Mas se você me der uma ajudinha, digamos que eu terei compaixão por você, e a polícia esquece que você bateu nas crianças. Ficamos todos felizes. É o espírito do Natal.

Fabrício deu o suborno ao policial, irritado, porém sem argumentos, e seguiu para ver como andavam os negócios.

Chegando à loja de produtos infantis localizada em uma região nobre da cidade, respirou aliviado.

- Pelo menos aqui eu tenho um pouco de felicidade no Natal. A loja está movimentada e o caixa está cheio.

Mas Fabrício foi olhando em volta aquilo tudo e duas coisas chamaram atenção: seus funcionários suados por usarem tocas de Natal como o frentista do posto de gasolina, e pessoas desesperadas pedindo descontos, promoções e financiamentos. Não gostou daquilo. Viu que a sua própria felicidade dependia da desgraça dos outros: homens e mulheres trabalhando em péssimas condições por uma esmola que ele pagava; e pais de família contraindo dívidas enormes para comprarem a alegria e o carinho de seus filhos em mais um Natal.

Colocou-se no lugar dos desesperados, por um tempo. Refletiu sobre as crueldades que fez com empregados, meninos de rua e sua esposa. Pensou sobre tudo e mandou escrever na porta da loja:

- Obrigado senhores clientes. Quando vocês compram presentes aqui, vocês me dão lucro, e o meu lucro gera empregos. Então faça muitas pessoas felizes neste Natal, façam-me rico e garantam pelo menos o emprego dos meus funcionários. O resto é conversa fiada!

Chamou a mais bonita de suas funcionárias, deu a ela o presente destinado à esposa, e chamou a garota para sair. Fechou as contas da loja, pagou aos funcionários, pediu desculpas pelo gorrinho quente na cabeça (prometeu que no próximo ano não haveria aquilo novamente) e, saindo de mãos dadas com a bela vendedora, disse:

- Feliz Natal e próspero Ano Novo para todos!!!!

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Chiquinho

Um dia Chiquinho saiu pela cidade sorrindo para todo mundo. Não havia criatura que passasse desapercebida. Cumprimentou os vizinhos, os desconhecidos, todos que passavam pelas ruas. Foi simpático com todos os bichos, dos cães aos insetos minúsculos. Parou por vários minutos a sorrir para uma formiga que havia perdido a trilha e disse (em volume suficiente para os transeuntes ouvirem):

- Ora, ora, pequenina, não consegue achar o caminho de casa? Venha comigo e eu vou te ajudar!

A formiga subiu por seus dedos, foi subindo e se perdeu pelo corpo. Chiquinho saiu procurando, ali por perto, a trilha para o formigueiro. Pensou: - Estou no centro da cidade, alguém vai me ajudar.

- Por favor, a senhora viu a trilha para o formigueiro? É que a minha pequena amiga está perdida.

Neste momento a formiguinha apareceu em seu pescoço. E a senhora acudiu:


- Meu rapaz, veja aqui na gola de sua camisa, uma formiga, tire-a daí.

- Eu sei que ela está aqui. Estamos procurando o caminho de volta pra casa. Ela está perdida.


A velhinha fez o sinal da cruz e disse:


- Que pena, tão bonito, mas tão desajustado!


Chiquinho nem deu importância. Agradeceu a boa vontade da senhora e seguiu olhando para o chão, procurando o caminho das formigas. Não foi fácil, porque as pessoas não paravam de caminhar por ali. E todos dizendo: - Sai da frente, maluco!

Chiquinho procurou até achar. Achou. A formiga correu rapidamente pelo seu corpo até o chão, finalmente encontrou a trilha para casa e se foi. O bom rapaz ficou muito contente por ter ajudado uma criatura indefesa. Ganhou o dia!


Seguiu perambulando, sorrindo para todos, ajudando as pessoas idosas, os deficientes, os insetos e os animais de rua. Ele era a melhor coisa que acontecera naquela cidade desde a fundação. Mas a cidade não sabia disto. Seu comportamento constantemente alegre e carinhoso e seu amor por todas as coisas vivas foi motivo de grande estranheza. Dois dias depois do episódio da formiga, que todos na pequena cidade tomaram conhecimento, ele virou motivo de risos. Era o maluco Chiquinho.

Totalmente bem consigo mesmo e em harmonia com a natureza, Chiquinho seguiu feliz. Ignorava as provocações que ouvia e sempre sorria para os mais agressivos, que o ameaçavam de espancamento se continuasse a agir como um afeminado e trocar afagos com cães e gatos.

Seus antigos amigos o deixaram de lado. Ninguém queria estar perto dele, pois estava doido, todos achavam que ele não era boa companhia. Na família, ninguém compreendia direito sua situação, mas continuaram dando-lhe moradia, comida e algum carinho.


O diferente comportamento começou em casa, quando ele observava a troca de carinhos entre dois mosquitos sobre a folha de uma planta que ficava cada momento mais bonita e viçosa ao contato com a luz do sol.

A mãe de Chiquinho pedira para que ele colocasse a planta no sol, e ele percebeu, pela primeira vez em 20 anos, que a planta gostava do sol tanto quanto ele próprio.

- Que interessante! – exclamou – A natureza é mesmo uma coisa só. E percebeu que sobre uma das folhas da planta, estava um casal de mosquitos copulando. – E viva a vida! Vocês mosquitos e você planta são seres vivos como eu. De agora em diante, eu serei o melhor dos seres humanos. Serei amigo dos homens, dos bichos e dos vegetais.


Uma vez a mãe havia contado uma história sobre um tal São Francisco de Assis, que fora um homem muito bom, o mais bondoso e mais caridoso homem de sua época. Ele era amigo dos animais e sua doutrina de vida caridosa se espalhou por vários cantos do mundo. Chiquinho vislumbrou-se o novo São Francisco

- Este só pode ser o meu destino, nós temos até o mesmo nome, não pode ser coincidência que nós dois tivemos a mesma visão do amor universal.


Deste dia em diante, saia para a rua logo cedo distribuindo boa vontade e voltava em casa apenas para comer e dormir.

O pai quis ter uma conversa séria com o rapaz:

- Francisco, meu filho, você tem que estudar e trabalhar. Não pode ficar nesta vida boa de achar que é santo. Isto não existe mais. Todos na cidade estão falando que está louco. Você tem que arrumar uma ocupação.

- Mas pai, eu trabalho. O senhor acha que é uma tarefa fácil convencer as pessoas que elas devem ser boas? Eu passo o dia inteiro dando bons exemplos de respeito à natureza e amor ao próximo. Um dia as pessoas hão de entender.

O pai não insistiu. Chamou a mulher e tiveram uma conversa:

- Ou ele está louco ou é um malandro de primeira. – disse o pai.

- Coitadinho do meu filhinho. – a mãe

- Precisamos de ajuda profissional. Não podemos continuar assim. Todo mundo na cidade ri do nosso filho, tem até quem queira bater nele só porque ele passa o dia todo sorrindo. - o pai estava realmente preocupado - e a gente sabe que muito sorriso é sinal de pouco juízo.

- E ele sai por ai blasfemando, dizendo que é São Francisco reencarnado. Deus nos perdoe! - a mãe faz o sinal da cruz e beija a medalhinha do santo católico.

- E então, o que vamos fazer? Proponho procurarmos um psiquiatra.

- Eu proponho perguntarmos para o padre Paulo primeiro.

Foram, então, até a casa paroquial. Lá encontraram padre Paulo, que acabara de rezar a missa da noite.

- Veja esta, senhor padre, nosso filho Chiquinho cismou agora que é a reencarnação de São Francisco de Assis. – a mãe transtornada.

- Percebo que este comportamento está prejudicando toda a família. Você não devia sair por ai espalhando essas mentiras, meu jovem. – disse o padre, muito sereno.

- Eu não minto. Eu apenas faço o que ninguém mais faz. Estou à disposição de quem precisar de ajuda. – Chiquinho fala com doçura, porém, firmeza.


- Olhe bem, Chiquinho. Você tem um problema de achar que é uma outra pessoa. Os médicos hoje em dia são capazes de curar casos como o seu. Uma pessoa não pode se dizer um santo da noite para o dia, é um processo de toda uma vida dedicada a Deus e à igreja.

- Eu acho tanta graça de vocês. O pior de tudo é que ainda acreditam nas próprias bobeiras que contam. São Francisco foi santo independentemente da sua igreja, ele foi santo porque foi um homem que distribuiu amor, paz e esperança, e assim sou eu. – Chiquinho sorriu, como de costume.

O padre não quis continuar a conversa. Desculpou-se com a mãe, carola da igreja, e aconselhou procurarem acompanhamento médico. Não havia psiquiatra na cidade. Procuraram, então, o médico amigo da família, que disse:

- Humm, o caso do Chiquinho é realmente peculiar, nunca vi nada assim. Ele tem muita convicção do que está fazendo e seu comportamento não é agressivo. Vou indicar-lhes um colega meu, que mora na capital. Ele trabalha num dois maiores hospitais psiquiátricos do país, certamente poderá ajudar.


Foram para a capital, pai, mãe e santo.

Lá encontraram o Dr. Albuquerque, diretor do instituto psiquiátrico, que recebeu a todos com piadas.

- Olá, então você é São Chiquinho, hein? Fico feliz em conhecer um homem santo. Aqui no hospital costumam chegar vários Hitleres, Stalins, Napoleões. Esta gente causa muita confusão. É a primeira vez que vejo um santo e já estou gostando de não ter que amarrar você.

Chiquinho sorria e disse:

- Muito prazer, doutor, em que posso servi-lo?

Psiquiatra e santo conversaram por duas horas. Após, Chiquinho foi permitido caminhar pela área onde os internos circulavam e o médico reuniu-se com os pais para o diagnóstico:

- O filho de vocês não oferece perigos para os outros. Mas ele pode ser um perigo para ele mesmo, achando-se um santo neste mundo tão repleto de perversidades. Vai acabar sofrendo muito lá fora.

- O que o senhor recomenda, doutor? - a mãe, chorosa.

- Digo a vocês que, como profissional desta área, já vi casos parecidos com o de Chiquinho. Recomendo que ele fique por um tempo aqui conosco, para que possamos estudar melhor o seu comportamento e identificar uma forma de resgatar o cidadão Chiquinho desta ilusão de ser um santo.

Chiquinho ficou lá, contrariado por não poder andar pelas ruas como gostava. Seu mundo no hospital ficou restrito a uma pequena variedade de insetos e às poucas pessoas que circulavam por ali (internos, médicos, enfermeiros, visitantes...). No hospital não eram permitidos animais e haviam poucas plantas.

Certo dia, quando encontrou o Dr. Albuquerque nos corredores do hospital, o santo se manifestou:

- Vocês não podem manter toda esta gente presa, sem contato com as belezas do mundo. Nós precisamos da natureza e a natureza precisa de nós. Este lugar é uma prisão de pessoas boas. Ninguém tem o direito de aprisionar pessoas só porque elas agem diferentes. Vocês nos prendem porque não queremos matá-los. Vocês nos prendem porque não temos preocupações como vocês. Nos prendem simplesmente porque não nos entendem. A sociedade dos normais tem inveja dos loucos, e por isto estamos aqui, todos presos. O mundo precisa da minha paz, mas, infelizmente, parece que o mundo não quer a minha paz.

O médico não deu ouvidos. Chamou um enfermeiro e mandou aplicar-lhe uns calmantes.

Os anos se passaram. O psiquiatra aposentou. Os familiares, que visitavam mensalmente, faleceram. E a sociedade manteve São Francisco preso, indefinidamente, até o dia de sua morte, com buracos nos pulsos e pés, cortes na cabeça, cicatrizes nas costas e um buraco na altura das costelas; feridas que ninguém sabe explicar de onde surgiram.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Deitado no colchão

Todos os dias ele já acorda com uma garrafa de rum a seu lado. A primeira ação da manhã é dar uma bela golada para iniciar mais um dia duro. Raramente lembra de todos os detalhes da noite anterior. Hoje, tem uma pessoa ao seu lado no velho colchão de casal que fica no centro do quarto. Ficou surpreso. Não sabe quem é, e o pior, não consegue entender direito o que é e como veio parar em sua casa! Não tem atitude. Fica ali deitado, duvidoso, sem coragem de levantar o lençol e descobrir um pouco sobre a noite anterior. A misteriosa criatura está deitada de lado, com o rosto virado para o outro lado. Joaquim só vê os cabelos ralos pintados de preto e a silhueta magra, indefinida se homem ou mulher, pois é muito magra. O desajeitado homem tenta se levantar um pouco para ver por cima, mas não consegue faze-lo, são muitas dores pelo corpo todo. Lembra de seu amado rum. Mesmo deitado, tem ânimo para pegar a garrafa e despejar sobre a boca o equivalente a uma dose dupla. Faz uma lambança, mas não se incomoda. A quitinete é uma pocilga, além do colchão ao centro, o ambiente é dominado por garrafas vazias ou quase vazias de rum, algumas são de vodka, conhaque, e vinho ruim. A cozinha está abandonada. Não há, sequer, uma geladeira. Várias sobras de comida se espalham pelo chão, pela pia e até pelas paredes. O lugar é o jardim das delícias para baratas, camundongos, aranhas, moscas de todas as cores e tamanhos e lagartixas. O cheiro é ruim como de alguém morto há meses e não enterrado. O banheiro, entupido, sem chuveiro e com o gesso do teto desabando. O colchão está todo suado, queimado de cigarros, sujo de bebida, comida e remédios. Joaquim sente dores intensas no corpo, precisa de medicamentos pesados para entorpece-lo e esquecer a vida infeliz que leva. Quase não sai de casa. E quase ninguém vem visitá-lo. Então o que faria aquela magreza toda a seu lado? Joaquim tinha pena de si, mas teve também pena da pobre criatura magrela. Olhava, olhava e ousou tocar. Passou sua mão esquerda levemente pelo tronco da pessoa, da forma que conseguiu. Fez um esforço, virou-se para a esquerda, ficando de frente para a pessoa, e então passou a mão direita sobre o corpo. Tocando apenas os ombros, braços , e cintura, não conseguiu decifrar o mistério. Ficou tentado em apalpar as genitálias. Moveu-se em direção à pessoa, colando os corpos, quando ia conseguir, finalmente, descobrir o que estava a seu lado, a lâmpada do banheiro cai no chão, o gesso desabara, foi um estrondo. A pessoa acordou e surpreendeu Joaquim quase satisfazendo sua curiosidade. De um salto, a criatura levantou e xingou o bêbado deitado de todos os nomes que conhecia. Era a boa velhinha que morava no apartamento de cima. Uma pessoa solitária, que cuidava de Joaquim pois sentia muita pena do rapaz. Aos 26 anos, ficara órfão de pai e mãe há dois anos, não tinha outros parentes nem amigos, vivia no apartamento que o advogado da família comprou para ele, após ficar com todo o dinheiro da herança e a casa. Joaquim nasceu com diversas doenças que foram se agravando ao longo do tempo. Não consegue mover as pernas, e sente dores por todo o corpo. Se vira o pescoço, dói. Se levanta a mão, dói. O álcool é seu alívio. Não tem dinheiro para comprar remédios. A velhinha leva para ele duas garrafas de rum diariamente, deixa sempre ao seu lado direito, e ele bebe sempre deitado. A boa senhora leva comida e troca sua fralda. O coitado perdeu, aos 22 anos, o controle das pregas, precisa de fraldas desde então. Não consegue falar, emite sons incompreensíveis, e respira com dificuldade. Além dos males físicos, o jovem também carregava um sério problema de memória que é agravado pelo consumo ininterrupto de álcool. Não conseguia se lembrar das coisas depois de dormir. Os pais morreram de bala perdida. Estavam deitados, amando, e foram atravessados fatalmente. O rapaz ficou traumatizado. E agora, por seu esquecimento e curiosidade, ofendeu a única pessoa que lhe dá atenção. A velha irritou-se realmente com a ousadia de Joaquim e chutou o rum para longe. Ele gemeu. Indignada, justificou que dormira ao seu lado , pois na noite anterior ele passara muito mal. Disse que nunca mais voltaria ali, saiu, lacrimejando, bateu a porta e não voltou. Joaquim ficou, olhando para o teto, sem entender nada, resmungando que não conseguia alcançar o rum. Morreu um dia depois, de uma crise de abstinência.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A explosão...

Sílvio era um sujeito daqueles ditos bem resolvidos. Era herdeiro de uma grande fortuna em terras e gado no interior do país e com o tempo se tornou gerente de vendas do grande abatedouro bovino, de propriedade de seu pai. Teve a iniciativa de montar um escritório para si em São Paulo, o que impulsionou os negócios da família. Teve tudo sempre na mão, mas sempre fez questão de trabalhar mais que todos. Casou-se, aos 32 anos, com a mais linda garota de sua cidade. Um prêmio muito cobiçado, o qual conseguiu conquistar graças à sua firmeza de pensamento. Ele costumava sempre dizer:
- Aprendi desde cedo com meu pai que o mais importante nessa vida é ser sério, trabalhar duro para sustentar a minha família. Terei muitos filhos com você, nossa família será um exemplo de felicidade. Todos sentirão inveja de mim, pois sou bem sucedido no meu trabalho e sou rico o suficiente para cuidar muito bem de você, que é a mulher mais linda deste mundo. Se casar comigo, você será a mulher mais feliz, terá de tudo o que o dinheiro pode comprar.
A moça, obviamente, ficou muito seduzida pela oferta. Casaram-se quando ela tinha 22, dez anos mais nova que ele. Ela era toda certinha, tocava harpa, filha de uma família de posses, não foi atraída apenas pelo dinheiro de Sílvio, mas pelas promessas de que ele seria um marido e pai muito dedicado. No casamento, mudaram-se para São Paulo.
Na adolescência, Sílvio fora o mais dedicado dos filhos e estudantes. Sempre foi muito competitivo, sempre delatava os irmãos em casa e tirava as melhores notas na escola (costumava esnobar os colegas de turma). Não fez amigos. Os irmãos gostavam dele, por mera conveniência familiar, mas não confiavam. Diziam que era ganancioso e traiçoeiro.
Freqüentou boas escolas e fez faculdade na Europa. Aprendeu muito sobre filosofias e religiões. Mas costumava dizer:
- Este negócio é tudo besteira. O importante mesmo é me dar bem. Ser poderoso e ter a melhor das mulheres só pra mim. Esta é a minha filosofia.
A vida dele era vazia. Muito vazia. Trabalhava muito, mais de 12 horas por dia. Chegava em casa, beijava sua mulher (seu troféu) e dormia. Por seu temperamento frio, acabou por não conquistar a esposa por completo. Não gostava de carinhos. Queria apenas ter filhos com ela, para que nascessem bonitos e inteligentes e fossem uma nova fonte de orgulho. Planejava ser um pai exemplar, incentivador dos filhos. A jovem Camila admirava a devoção do marido ao trabalho e ao conforto da família, mas pedia que ele tivesse mais tempo com ela. Certa vez, disse:
- Sílvio, precisamos ter uma conversa séria. Casamento não é só pagar a minha vida de madame, eu não preciso disso mais do que eu já tinha com minha família.
- Mas, aqui, minha querida, você é a dona de tudo, a comandante, e não a sua mãe.
- Eu entendo isto, meu bem, mas eu preciso de um pouco mais de atenção. Você volta do trabalho todo dia exausto (ele trabalhava inclusive aos sábados, domingos e feriados). Na maioria das vezes, dorme; quando tenta fazer sexo comigo, é um fracasso. Esta não é a vida que sonhei para a gente.
A moça, então, dois anos após o casamento, no dia de seu aniversário, quando o marido chegava em casa de um cansativo dia de trabalho, disse:
- Estou indo embora, vou para casa de meus pais. Preciso de alguém que me ame.
- Mas eu te amo - disse ele.
- Não ama nada. Você só me quer para esnobar os outros homens. Aliás, tudo o que você tem e faz é apenas para mostrar para os outros. Me diz uma coisa, o que você já fez, nesta vida, por você?
Sílvio gaguejou. Ficou surpreso com o desafio que a mulher lançara. E desabafou:
- Eu trabalho duro na empresa da família para orgulhar o meu pai e te dar tudo do bom e do melhor, e você me vem agora com esta ingratidão!!!
E a esposa, sem pestanejar:
- Eu quero um homem ao meu lado para vivermos felizes. Se formos ricos materialmente, ótimo, mas se não, isto não importa. Eu quero a felicidade com as pessoas. Para mim não é felicidade ficar em casa , nesta casa gigantesca, sozinha, sem amigos, sem parentes. Você jogou fora tudo o que era importante de verdade. Você não tem amigos, é brigado com todos os seus irmãos por disputas de dinheiro e o pior, você nunca me fez um carinho. (chorando) Você é pior que uma pedra. Porque a pedra pelo menos não ilude ninguém. Você me enganou com suas promessas de perfeição. Este não é o mundo que eu quero para mim.
Sílvio foi ficando azul, roxo, vermelho, ficou de cores que Camila nunca tinha visto antes. Foi como uma explosão:
- Uááááááááááááá
e saiu correndo pela porta da frente, nem pegou o carro do qual tinha tanto orgulho. Saiu pela rua desnorteado. Saiu do condomínio, gritando e chorando, seguiu pela avenida principal e sumiu pela cidade.
Dois dias se passaram e nenhuma notícia. Os familiares todos se reuniram, pais, irmãos e a esposa. Todos foram unânimes em concordar com as razões da mulher, que exigia o mínimo de um homem, ser um bom companheiro e amante.

O irmão mais velho comentou:
- Eu não sei como você suportou todo este tempo ao lado dele, Camila. Sílvio sempre foi insensível. Ele sempre fez tudo muito certinho e achava que só poderia ter a admiração e atenção das pessoas se fosse o melhor de todos. Coitado. Muita pressão.
Sílvio tinha uma fixação pela idéia de perfeição que ele jamais se permitiu pequenas diversões, jamais se entregou à preguiça e nunca se entregou ao carinho das pessoas. Cresceu para ser uma máquina de estudar e trabalhar, sempre obtendo os melhores resultados. Mas não soube aproveitar a vida. Não fazia amigos, fazia sócios e parceiros. Não tinha uma mulher amada, mas sim uma bela fêmea de exposição que o fazia sentir melhor que os outros homens. E quando seu lindo bibelô foi embora, ele surtou. Mudou de humor, como jamais acontecera antes. Todo aquele sacrifício sobre-humano, e para quê? A mulher jogou em sua cara tudo o que ele evitava pensar, e na correria sem destino, pensou:
- Eu sou o melhor dos homens, mas não tenho nenhum amigo. Tenho a melhor das mulheres, e ela não me ama. Eu sou o pior dos homens! Eu sou uma farsa.
Não voltou para casa. Seguiu caminhando como um mendigo. Foi maltratado no centro da cidade. Não tinha amigos, então ninguém o reconhecia.
Camila não teve remorsos. Entregou-se aos amores ladinos ofertados pela noite paulistana. E justificava:
- Ele roubou dois anos da minha vida. O problema não é meu se agora acham que ele ficou maluco. Pra mim, ele sempre foi maluco.
A família ficou preocupada e ordenou várias buscas sem sucesso.
A mãe, angustiada, esbravejava com o marido diariamente:
- A culpa foi sua, que sempre exigiu demais quando ele era menino. Deu no que deu.
Sílvio caminhou até sua cidade natal, demorou 4 anos para chegar. Dormiu na rua, ficou sem comer, urinou nas calças e passou por todo tipo de privação. Causava muita estranheza onde quer que chegasse. Não falava uma palavra. Só olhava para as pessoas e sorria.
Quando chegou à porta da casa da família, tocou a campainha. O filho estava de volta! Foi uma grande felicidade, mas todos ficaram com pena da situação em que ele se encontrava.
Não quis tomar banho. Disse que não ficaria ali muito tempo.
Chamaram a ex-mulher para vê-lo. Ela foi.
Em casa, 1 dia após seu retorno, com cheiro de urina, tirou a roupa, beijou o rosto de todos, abraçou um a um e , por fim, masturbou-se e ejaculou na perna de Camila.
- Agora eu sou um homem pra você? Agora eu sou um homem pra você?
Ninguém teve coragem de fazer nada. Saiu da casa, sorridente, com ar triunfante, e nunca mais foi visto.