segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Deitado no colchão

Todos os dias ele já acorda com uma garrafa de rum a seu lado. A primeira ação da manhã é dar uma bela golada para iniciar mais um dia duro. Raramente lembra de todos os detalhes da noite anterior. Hoje, tem uma pessoa ao seu lado no velho colchão de casal que fica no centro do quarto. Ficou surpreso. Não sabe quem é, e o pior, não consegue entender direito o que é e como veio parar em sua casa! Não tem atitude. Fica ali deitado, duvidoso, sem coragem de levantar o lençol e descobrir um pouco sobre a noite anterior. A misteriosa criatura está deitada de lado, com o rosto virado para o outro lado. Joaquim só vê os cabelos ralos pintados de preto e a silhueta magra, indefinida se homem ou mulher, pois é muito magra. O desajeitado homem tenta se levantar um pouco para ver por cima, mas não consegue faze-lo, são muitas dores pelo corpo todo. Lembra de seu amado rum. Mesmo deitado, tem ânimo para pegar a garrafa e despejar sobre a boca o equivalente a uma dose dupla. Faz uma lambança, mas não se incomoda. A quitinete é uma pocilga, além do colchão ao centro, o ambiente é dominado por garrafas vazias ou quase vazias de rum, algumas são de vodka, conhaque, e vinho ruim. A cozinha está abandonada. Não há, sequer, uma geladeira. Várias sobras de comida se espalham pelo chão, pela pia e até pelas paredes. O lugar é o jardim das delícias para baratas, camundongos, aranhas, moscas de todas as cores e tamanhos e lagartixas. O cheiro é ruim como de alguém morto há meses e não enterrado. O banheiro, entupido, sem chuveiro e com o gesso do teto desabando. O colchão está todo suado, queimado de cigarros, sujo de bebida, comida e remédios. Joaquim sente dores intensas no corpo, precisa de medicamentos pesados para entorpece-lo e esquecer a vida infeliz que leva. Quase não sai de casa. E quase ninguém vem visitá-lo. Então o que faria aquela magreza toda a seu lado? Joaquim tinha pena de si, mas teve também pena da pobre criatura magrela. Olhava, olhava e ousou tocar. Passou sua mão esquerda levemente pelo tronco da pessoa, da forma que conseguiu. Fez um esforço, virou-se para a esquerda, ficando de frente para a pessoa, e então passou a mão direita sobre o corpo. Tocando apenas os ombros, braços , e cintura, não conseguiu decifrar o mistério. Ficou tentado em apalpar as genitálias. Moveu-se em direção à pessoa, colando os corpos, quando ia conseguir, finalmente, descobrir o que estava a seu lado, a lâmpada do banheiro cai no chão, o gesso desabara, foi um estrondo. A pessoa acordou e surpreendeu Joaquim quase satisfazendo sua curiosidade. De um salto, a criatura levantou e xingou o bêbado deitado de todos os nomes que conhecia. Era a boa velhinha que morava no apartamento de cima. Uma pessoa solitária, que cuidava de Joaquim pois sentia muita pena do rapaz. Aos 26 anos, ficara órfão de pai e mãe há dois anos, não tinha outros parentes nem amigos, vivia no apartamento que o advogado da família comprou para ele, após ficar com todo o dinheiro da herança e a casa. Joaquim nasceu com diversas doenças que foram se agravando ao longo do tempo. Não consegue mover as pernas, e sente dores por todo o corpo. Se vira o pescoço, dói. Se levanta a mão, dói. O álcool é seu alívio. Não tem dinheiro para comprar remédios. A velhinha leva para ele duas garrafas de rum diariamente, deixa sempre ao seu lado direito, e ele bebe sempre deitado. A boa senhora leva comida e troca sua fralda. O coitado perdeu, aos 22 anos, o controle das pregas, precisa de fraldas desde então. Não consegue falar, emite sons incompreensíveis, e respira com dificuldade. Além dos males físicos, o jovem também carregava um sério problema de memória que é agravado pelo consumo ininterrupto de álcool. Não conseguia se lembrar das coisas depois de dormir. Os pais morreram de bala perdida. Estavam deitados, amando, e foram atravessados fatalmente. O rapaz ficou traumatizado. E agora, por seu esquecimento e curiosidade, ofendeu a única pessoa que lhe dá atenção. A velha irritou-se realmente com a ousadia de Joaquim e chutou o rum para longe. Ele gemeu. Indignada, justificou que dormira ao seu lado , pois na noite anterior ele passara muito mal. Disse que nunca mais voltaria ali, saiu, lacrimejando, bateu a porta e não voltou. Joaquim ficou, olhando para o teto, sem entender nada, resmungando que não conseguia alcançar o rum. Morreu um dia depois, de uma crise de abstinência.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A explosão...

Sílvio era um sujeito daqueles ditos bem resolvidos. Era herdeiro de uma grande fortuna em terras e gado no interior do país e com o tempo se tornou gerente de vendas do grande abatedouro bovino, de propriedade de seu pai. Teve a iniciativa de montar um escritório para si em São Paulo, o que impulsionou os negócios da família. Teve tudo sempre na mão, mas sempre fez questão de trabalhar mais que todos. Casou-se, aos 32 anos, com a mais linda garota de sua cidade. Um prêmio muito cobiçado, o qual conseguiu conquistar graças à sua firmeza de pensamento. Ele costumava sempre dizer:
- Aprendi desde cedo com meu pai que o mais importante nessa vida é ser sério, trabalhar duro para sustentar a minha família. Terei muitos filhos com você, nossa família será um exemplo de felicidade. Todos sentirão inveja de mim, pois sou bem sucedido no meu trabalho e sou rico o suficiente para cuidar muito bem de você, que é a mulher mais linda deste mundo. Se casar comigo, você será a mulher mais feliz, terá de tudo o que o dinheiro pode comprar.
A moça, obviamente, ficou muito seduzida pela oferta. Casaram-se quando ela tinha 22, dez anos mais nova que ele. Ela era toda certinha, tocava harpa, filha de uma família de posses, não foi atraída apenas pelo dinheiro de Sílvio, mas pelas promessas de que ele seria um marido e pai muito dedicado. No casamento, mudaram-se para São Paulo.
Na adolescência, Sílvio fora o mais dedicado dos filhos e estudantes. Sempre foi muito competitivo, sempre delatava os irmãos em casa e tirava as melhores notas na escola (costumava esnobar os colegas de turma). Não fez amigos. Os irmãos gostavam dele, por mera conveniência familiar, mas não confiavam. Diziam que era ganancioso e traiçoeiro.
Freqüentou boas escolas e fez faculdade na Europa. Aprendeu muito sobre filosofias e religiões. Mas costumava dizer:
- Este negócio é tudo besteira. O importante mesmo é me dar bem. Ser poderoso e ter a melhor das mulheres só pra mim. Esta é a minha filosofia.
A vida dele era vazia. Muito vazia. Trabalhava muito, mais de 12 horas por dia. Chegava em casa, beijava sua mulher (seu troféu) e dormia. Por seu temperamento frio, acabou por não conquistar a esposa por completo. Não gostava de carinhos. Queria apenas ter filhos com ela, para que nascessem bonitos e inteligentes e fossem uma nova fonte de orgulho. Planejava ser um pai exemplar, incentivador dos filhos. A jovem Camila admirava a devoção do marido ao trabalho e ao conforto da família, mas pedia que ele tivesse mais tempo com ela. Certa vez, disse:
- Sílvio, precisamos ter uma conversa séria. Casamento não é só pagar a minha vida de madame, eu não preciso disso mais do que eu já tinha com minha família.
- Mas, aqui, minha querida, você é a dona de tudo, a comandante, e não a sua mãe.
- Eu entendo isto, meu bem, mas eu preciso de um pouco mais de atenção. Você volta do trabalho todo dia exausto (ele trabalhava inclusive aos sábados, domingos e feriados). Na maioria das vezes, dorme; quando tenta fazer sexo comigo, é um fracasso. Esta não é a vida que sonhei para a gente.
A moça, então, dois anos após o casamento, no dia de seu aniversário, quando o marido chegava em casa de um cansativo dia de trabalho, disse:
- Estou indo embora, vou para casa de meus pais. Preciso de alguém que me ame.
- Mas eu te amo - disse ele.
- Não ama nada. Você só me quer para esnobar os outros homens. Aliás, tudo o que você tem e faz é apenas para mostrar para os outros. Me diz uma coisa, o que você já fez, nesta vida, por você?
Sílvio gaguejou. Ficou surpreso com o desafio que a mulher lançara. E desabafou:
- Eu trabalho duro na empresa da família para orgulhar o meu pai e te dar tudo do bom e do melhor, e você me vem agora com esta ingratidão!!!
E a esposa, sem pestanejar:
- Eu quero um homem ao meu lado para vivermos felizes. Se formos ricos materialmente, ótimo, mas se não, isto não importa. Eu quero a felicidade com as pessoas. Para mim não é felicidade ficar em casa , nesta casa gigantesca, sozinha, sem amigos, sem parentes. Você jogou fora tudo o que era importante de verdade. Você não tem amigos, é brigado com todos os seus irmãos por disputas de dinheiro e o pior, você nunca me fez um carinho. (chorando) Você é pior que uma pedra. Porque a pedra pelo menos não ilude ninguém. Você me enganou com suas promessas de perfeição. Este não é o mundo que eu quero para mim.
Sílvio foi ficando azul, roxo, vermelho, ficou de cores que Camila nunca tinha visto antes. Foi como uma explosão:
- Uááááááááááááá
e saiu correndo pela porta da frente, nem pegou o carro do qual tinha tanto orgulho. Saiu pela rua desnorteado. Saiu do condomínio, gritando e chorando, seguiu pela avenida principal e sumiu pela cidade.
Dois dias se passaram e nenhuma notícia. Os familiares todos se reuniram, pais, irmãos e a esposa. Todos foram unânimes em concordar com as razões da mulher, que exigia o mínimo de um homem, ser um bom companheiro e amante.

O irmão mais velho comentou:
- Eu não sei como você suportou todo este tempo ao lado dele, Camila. Sílvio sempre foi insensível. Ele sempre fez tudo muito certinho e achava que só poderia ter a admiração e atenção das pessoas se fosse o melhor de todos. Coitado. Muita pressão.
Sílvio tinha uma fixação pela idéia de perfeição que ele jamais se permitiu pequenas diversões, jamais se entregou à preguiça e nunca se entregou ao carinho das pessoas. Cresceu para ser uma máquina de estudar e trabalhar, sempre obtendo os melhores resultados. Mas não soube aproveitar a vida. Não fazia amigos, fazia sócios e parceiros. Não tinha uma mulher amada, mas sim uma bela fêmea de exposição que o fazia sentir melhor que os outros homens. E quando seu lindo bibelô foi embora, ele surtou. Mudou de humor, como jamais acontecera antes. Todo aquele sacrifício sobre-humano, e para quê? A mulher jogou em sua cara tudo o que ele evitava pensar, e na correria sem destino, pensou:
- Eu sou o melhor dos homens, mas não tenho nenhum amigo. Tenho a melhor das mulheres, e ela não me ama. Eu sou o pior dos homens! Eu sou uma farsa.
Não voltou para casa. Seguiu caminhando como um mendigo. Foi maltratado no centro da cidade. Não tinha amigos, então ninguém o reconhecia.
Camila não teve remorsos. Entregou-se aos amores ladinos ofertados pela noite paulistana. E justificava:
- Ele roubou dois anos da minha vida. O problema não é meu se agora acham que ele ficou maluco. Pra mim, ele sempre foi maluco.
A família ficou preocupada e ordenou várias buscas sem sucesso.
A mãe, angustiada, esbravejava com o marido diariamente:
- A culpa foi sua, que sempre exigiu demais quando ele era menino. Deu no que deu.
Sílvio caminhou até sua cidade natal, demorou 4 anos para chegar. Dormiu na rua, ficou sem comer, urinou nas calças e passou por todo tipo de privação. Causava muita estranheza onde quer que chegasse. Não falava uma palavra. Só olhava para as pessoas e sorria.
Quando chegou à porta da casa da família, tocou a campainha. O filho estava de volta! Foi uma grande felicidade, mas todos ficaram com pena da situação em que ele se encontrava.
Não quis tomar banho. Disse que não ficaria ali muito tempo.
Chamaram a ex-mulher para vê-lo. Ela foi.
Em casa, 1 dia após seu retorno, com cheiro de urina, tirou a roupa, beijou o rosto de todos, abraçou um a um e , por fim, masturbou-se e ejaculou na perna de Camila.
- Agora eu sou um homem pra você? Agora eu sou um homem pra você?
Ninguém teve coragem de fazer nada. Saiu da casa, sorridente, com ar triunfante, e nunca mais foi visto.