terça-feira, 6 de novembro de 2007

Chiquinho

Um dia Chiquinho saiu pela cidade sorrindo para todo mundo. Não havia criatura que passasse desapercebida. Cumprimentou os vizinhos, os desconhecidos, todos que passavam pelas ruas. Foi simpático com todos os bichos, dos cães aos insetos minúsculos. Parou por vários minutos a sorrir para uma formiga que havia perdido a trilha e disse (em volume suficiente para os transeuntes ouvirem):

- Ora, ora, pequenina, não consegue achar o caminho de casa? Venha comigo e eu vou te ajudar!

A formiga subiu por seus dedos, foi subindo e se perdeu pelo corpo. Chiquinho saiu procurando, ali por perto, a trilha para o formigueiro. Pensou: - Estou no centro da cidade, alguém vai me ajudar.

- Por favor, a senhora viu a trilha para o formigueiro? É que a minha pequena amiga está perdida.

Neste momento a formiguinha apareceu em seu pescoço. E a senhora acudiu:


- Meu rapaz, veja aqui na gola de sua camisa, uma formiga, tire-a daí.

- Eu sei que ela está aqui. Estamos procurando o caminho de volta pra casa. Ela está perdida.


A velhinha fez o sinal da cruz e disse:


- Que pena, tão bonito, mas tão desajustado!


Chiquinho nem deu importância. Agradeceu a boa vontade da senhora e seguiu olhando para o chão, procurando o caminho das formigas. Não foi fácil, porque as pessoas não paravam de caminhar por ali. E todos dizendo: - Sai da frente, maluco!

Chiquinho procurou até achar. Achou. A formiga correu rapidamente pelo seu corpo até o chão, finalmente encontrou a trilha para casa e se foi. O bom rapaz ficou muito contente por ter ajudado uma criatura indefesa. Ganhou o dia!


Seguiu perambulando, sorrindo para todos, ajudando as pessoas idosas, os deficientes, os insetos e os animais de rua. Ele era a melhor coisa que acontecera naquela cidade desde a fundação. Mas a cidade não sabia disto. Seu comportamento constantemente alegre e carinhoso e seu amor por todas as coisas vivas foi motivo de grande estranheza. Dois dias depois do episódio da formiga, que todos na pequena cidade tomaram conhecimento, ele virou motivo de risos. Era o maluco Chiquinho.

Totalmente bem consigo mesmo e em harmonia com a natureza, Chiquinho seguiu feliz. Ignorava as provocações que ouvia e sempre sorria para os mais agressivos, que o ameaçavam de espancamento se continuasse a agir como um afeminado e trocar afagos com cães e gatos.

Seus antigos amigos o deixaram de lado. Ninguém queria estar perto dele, pois estava doido, todos achavam que ele não era boa companhia. Na família, ninguém compreendia direito sua situação, mas continuaram dando-lhe moradia, comida e algum carinho.


O diferente comportamento começou em casa, quando ele observava a troca de carinhos entre dois mosquitos sobre a folha de uma planta que ficava cada momento mais bonita e viçosa ao contato com a luz do sol.

A mãe de Chiquinho pedira para que ele colocasse a planta no sol, e ele percebeu, pela primeira vez em 20 anos, que a planta gostava do sol tanto quanto ele próprio.

- Que interessante! – exclamou – A natureza é mesmo uma coisa só. E percebeu que sobre uma das folhas da planta, estava um casal de mosquitos copulando. – E viva a vida! Vocês mosquitos e você planta são seres vivos como eu. De agora em diante, eu serei o melhor dos seres humanos. Serei amigo dos homens, dos bichos e dos vegetais.


Uma vez a mãe havia contado uma história sobre um tal São Francisco de Assis, que fora um homem muito bom, o mais bondoso e mais caridoso homem de sua época. Ele era amigo dos animais e sua doutrina de vida caridosa se espalhou por vários cantos do mundo. Chiquinho vislumbrou-se o novo São Francisco

- Este só pode ser o meu destino, nós temos até o mesmo nome, não pode ser coincidência que nós dois tivemos a mesma visão do amor universal.


Deste dia em diante, saia para a rua logo cedo distribuindo boa vontade e voltava em casa apenas para comer e dormir.

O pai quis ter uma conversa séria com o rapaz:

- Francisco, meu filho, você tem que estudar e trabalhar. Não pode ficar nesta vida boa de achar que é santo. Isto não existe mais. Todos na cidade estão falando que está louco. Você tem que arrumar uma ocupação.

- Mas pai, eu trabalho. O senhor acha que é uma tarefa fácil convencer as pessoas que elas devem ser boas? Eu passo o dia inteiro dando bons exemplos de respeito à natureza e amor ao próximo. Um dia as pessoas hão de entender.

O pai não insistiu. Chamou a mulher e tiveram uma conversa:

- Ou ele está louco ou é um malandro de primeira. – disse o pai.

- Coitadinho do meu filhinho. – a mãe

- Precisamos de ajuda profissional. Não podemos continuar assim. Todo mundo na cidade ri do nosso filho, tem até quem queira bater nele só porque ele passa o dia todo sorrindo. - o pai estava realmente preocupado - e a gente sabe que muito sorriso é sinal de pouco juízo.

- E ele sai por ai blasfemando, dizendo que é São Francisco reencarnado. Deus nos perdoe! - a mãe faz o sinal da cruz e beija a medalhinha do santo católico.

- E então, o que vamos fazer? Proponho procurarmos um psiquiatra.

- Eu proponho perguntarmos para o padre Paulo primeiro.

Foram, então, até a casa paroquial. Lá encontraram padre Paulo, que acabara de rezar a missa da noite.

- Veja esta, senhor padre, nosso filho Chiquinho cismou agora que é a reencarnação de São Francisco de Assis. – a mãe transtornada.

- Percebo que este comportamento está prejudicando toda a família. Você não devia sair por ai espalhando essas mentiras, meu jovem. – disse o padre, muito sereno.

- Eu não minto. Eu apenas faço o que ninguém mais faz. Estou à disposição de quem precisar de ajuda. – Chiquinho fala com doçura, porém, firmeza.


- Olhe bem, Chiquinho. Você tem um problema de achar que é uma outra pessoa. Os médicos hoje em dia são capazes de curar casos como o seu. Uma pessoa não pode se dizer um santo da noite para o dia, é um processo de toda uma vida dedicada a Deus e à igreja.

- Eu acho tanta graça de vocês. O pior de tudo é que ainda acreditam nas próprias bobeiras que contam. São Francisco foi santo independentemente da sua igreja, ele foi santo porque foi um homem que distribuiu amor, paz e esperança, e assim sou eu. – Chiquinho sorriu, como de costume.

O padre não quis continuar a conversa. Desculpou-se com a mãe, carola da igreja, e aconselhou procurarem acompanhamento médico. Não havia psiquiatra na cidade. Procuraram, então, o médico amigo da família, que disse:

- Humm, o caso do Chiquinho é realmente peculiar, nunca vi nada assim. Ele tem muita convicção do que está fazendo e seu comportamento não é agressivo. Vou indicar-lhes um colega meu, que mora na capital. Ele trabalha num dois maiores hospitais psiquiátricos do país, certamente poderá ajudar.


Foram para a capital, pai, mãe e santo.

Lá encontraram o Dr. Albuquerque, diretor do instituto psiquiátrico, que recebeu a todos com piadas.

- Olá, então você é São Chiquinho, hein? Fico feliz em conhecer um homem santo. Aqui no hospital costumam chegar vários Hitleres, Stalins, Napoleões. Esta gente causa muita confusão. É a primeira vez que vejo um santo e já estou gostando de não ter que amarrar você.

Chiquinho sorria e disse:

- Muito prazer, doutor, em que posso servi-lo?

Psiquiatra e santo conversaram por duas horas. Após, Chiquinho foi permitido caminhar pela área onde os internos circulavam e o médico reuniu-se com os pais para o diagnóstico:

- O filho de vocês não oferece perigos para os outros. Mas ele pode ser um perigo para ele mesmo, achando-se um santo neste mundo tão repleto de perversidades. Vai acabar sofrendo muito lá fora.

- O que o senhor recomenda, doutor? - a mãe, chorosa.

- Digo a vocês que, como profissional desta área, já vi casos parecidos com o de Chiquinho. Recomendo que ele fique por um tempo aqui conosco, para que possamos estudar melhor o seu comportamento e identificar uma forma de resgatar o cidadão Chiquinho desta ilusão de ser um santo.

Chiquinho ficou lá, contrariado por não poder andar pelas ruas como gostava. Seu mundo no hospital ficou restrito a uma pequena variedade de insetos e às poucas pessoas que circulavam por ali (internos, médicos, enfermeiros, visitantes...). No hospital não eram permitidos animais e haviam poucas plantas.

Certo dia, quando encontrou o Dr. Albuquerque nos corredores do hospital, o santo se manifestou:

- Vocês não podem manter toda esta gente presa, sem contato com as belezas do mundo. Nós precisamos da natureza e a natureza precisa de nós. Este lugar é uma prisão de pessoas boas. Ninguém tem o direito de aprisionar pessoas só porque elas agem diferentes. Vocês nos prendem porque não queremos matá-los. Vocês nos prendem porque não temos preocupações como vocês. Nos prendem simplesmente porque não nos entendem. A sociedade dos normais tem inveja dos loucos, e por isto estamos aqui, todos presos. O mundo precisa da minha paz, mas, infelizmente, parece que o mundo não quer a minha paz.

O médico não deu ouvidos. Chamou um enfermeiro e mandou aplicar-lhe uns calmantes.

Os anos se passaram. O psiquiatra aposentou. Os familiares, que visitavam mensalmente, faleceram. E a sociedade manteve São Francisco preso, indefinidamente, até o dia de sua morte, com buracos nos pulsos e pés, cortes na cabeça, cicatrizes nas costas e um buraco na altura das costelas; feridas que ninguém sabe explicar de onde surgiram.