sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O Espírito do Natal

- Faz muito calor. E eu aqui com esse gorro vermelho de lã em cima da cabeça. Estou suando muito, parece até que acabei de molhar os cabelos. Mas não molhei. Estou suado.

- Então tira o gorrinho da cabeça, cara. Pára de reclamar e faz alguma coisa.

- Se eu tirar o gorro da cabeça, o patrão me manda embora, pô.

- Quem foi que te disse isso?

- Foi o que ele mesmo disse pra todo mundo que trabalha aqui. Nessa época do ano tem muita gente querendo emprego, e quem vem trabalhar temporário tem que saber entrar na regra do jogo. E aqui a regra é essa, trabalhar com o gorro do Papai Noel na cabeça, não importa o sol.

- Muito bem, obrigado. Vou seguir meu caminho. Feliz Natal!!! Tomara que o Papai Noel traga bons presentes para compensar o seu suor, pode ficar com o troco.

Então Fabrício saiu do posto de gasolina e dirigiu até o shopping. Que estava muito movimentado.

- É Natal. – disse uma moça apressada que trombou com ele logo na saída do estacionamento – você não pode ficar ai no caminho, tem muita gente passando, estou com pressa. Anda, anda.

E Fabrício foi empurrado para dentro da correnteza de pessoas. Estava ainda meio desnorteado, nem havia pensado onde iria para comprar o presente de sua esposa. E seguiu o fluxo de pessoas que caminhavam aflitas pelos corredores olhando lojas e discutindo promoções.

Estava perdido. Por onde começar a busca? Tantas lojas, tantas opções, e ele acabara de brigar com a mulher sobre dinheiro. Disse que ela gastava demais. E ela disse que ele era pão-duro. Orgulhou-se de que era ele quem colocava o dinheiro em casa e que a mulher só gastava. Ela disse que ia para a casa da mãe dela, que não era obrigada a ouvir desaforos daquela natureza. Agora ele estava no shopping, procurando um presente que apaziguasse os ânimos em casa, afinal de contas, é Natal.

Entrou, por fim, em uma loja muito perfumada. Falou toda a verdade:

- Minha mulher quer sair de casa, preciso de um perfume que seja uma poção do amor para reconquistá-la.

- Sei exatamente o que o senhor precisa. - e mostrou a cestinha de perfumes e sabonetes mais cara da loja.

Fabrício bateu o olho no preço e deu um salto para trás. Pensou, pensou.... E lembrou o que a mulher disse sobre ser pão-duro.

- É muito bonito este arranjo. Vou levar. Coisa cara, coisa boa. Minha mulher vai cair aos meus pés novamente.

- Feliz Natal e boa sorte!

Feliz ficou a vendedora. A comissão daquela venda seria a salvação de seu próprio Natal. Já era dia 20 de dezembro e ainda não comprara nada para sua mãe nem para sua filha, pois a grana estava curta.

Fabrício saiu do shopping e parou com o carro em um semáforo. Um garoto de rua ficou em frente ao carro e fez malabarismos, outro deixou um saquinho de bala. Eram concorrentes. O bem intencionado Fabrício, embebido do espírito natalino, sacou uma nota de R$1,00 e disse aos dois meninos:

- Só tenho isso, é para dividirem, Feliz Natal!!!

Os garotos brigaram pela nota, que se rasgou. Fabrício encostou o carro e foi chamar a atenção dos dois.

- Vocês sabem quanto me custa de trabalho ganhar uma nota dessas? Eu dei pra vocês, mas não foi pra vocês brigarem. Estamos perto do Natal, não quero ver uma coisa dessas. - deu um sopapo em cada moleque, entrou no carro e foi embora.

Dentro do carro:

- Onde é que esse mundo vai parar. Nem no Natal essa gente se respeita. – sentia-se o dono da verdade e um ser repleto de compaixão.

O DIA 24

- Amanhã é o Natal, todos os meus problemas vão se resolver.

Os dias haviam se passado sem que a mulher desse qualquer notícia. Fabrício foi à procura da esposa e, na casa da mãe, ouviu a resposta:

- Você pisa em cima da minha filha e agora quer pedir desculpas em nome do Natal? Você não merece.

- Mas no Natal todos merecemos uma segunda chance. Devemos amar uns aos outros. Veja o que eu trouxe!!

- Você acha que pode nos comprar com presentes caros? - A velha ainda praguejou alguma coisa sobre o comportamento de Fabrício e bateu a porta, indignada.

A esposa estava em casa, fechada no quarto, humilhada pelas palavras ásperas do marido, que lhe jogara na cara o fato dela não trabalhar e viver vida de madame. Ele disse ainda que ela era interesseira. O que foi a pior das agressões.

Fabrício passou o dia buscando respostas. Foi a uma igreja, rezou e pediu pelo perdão de seus pecados. Não conseguia encontrar sozinho a razão para os sentimentos da mulher, não era capaz de verdadeira compaixão. Foi confessar ao padre:

- Padre Antônio, o senhor me conhece desde pequeno, eu sou um bom rapaz.

- Sim, Fabrício, você sempre foi um menino obediente e temente a Deus.

- Eu briguei com a minha mulher. Ela saiu de casa. E agora estou desesperado. Sozinho em pleno Natal.

- Nunca estamos sozinhos no Natal. É uma época onde todas as almas estão ligadas pela celebração do nascimento de Jesus Cristo, nosso salvador. É uma época de paz e prosperidade.

Fabrício não entendeu direito o que o Padre disse com esse negócio de almas ligadas, paz e prosperidade. Só queria mesmo ganhar de presente de Natal, o retorno da mulher querida.

Já era início da noite, estava de carro e parou no semáforo onde os meninos faziam malabarismo e vendiam balas. Dessa vez, estava ainda mais exaltado:

- Sai pra lá com esse negócio moleque, não estou com paciência para vocês.

- Dá uma ajudinha tio. É Natal.

- Eu tenho coisas mais importantes para me preocupar.

- Ricaço pão-duro. Você vai pro inferno, filho da puta!!!! - um menino que estava na calçada atirou uma pedra na lataria do carro e saiu correndo.

- Ah moleque! Vou te matar. Vou te pegar e comer você vivo, seu bandidinho.

Fabrício desceu do carro e correu atrás do menino, que entrou em um beco.

Entrando pelas ruelas ele viu uma coisa que nunca vira antes em sua vida. As famílias que viviam ali no beco se organizavam em uma espécie de ceia. Todos alegres, como ele deveria estar com sua família. Não teve coragem de seguir na tentativa de agressão ao menino, que se escondeu atrás dos adultos. Fabrício teve medo e voltou para o carro.

- Cambada de vagabundo. E ainda por cima têm um Natal mais feliz que o meu. Isto não é justo.

Foi à polícia dar queixa. Chegando lá foi reconhecido pelo agente plantonista que o vira batendo nos dois moleques uns dias antes.

- Se deu mal, hein, boca boa. Logo no Natal. Vai dar um prejuízo. E ano novo já viu, né: tem que pagar os impostos e as dívidas do ano passado estão acumuladas. Não sei porque todo mundo fica feliz nessa época do ano. Só tem desgraça. – disse o agente

- Eu gosto do Natal, porque as pessoas ficam felizes. Mas este meu Natal está péssimo. Minha mulher brigou comigo e agora esses pivetes amassaram o meu carro.

- Quanto à sua mulher, não posso fazer nada, amigo. Quem sabe você não arruma uma esposa nova pro ano novo? Com relação aos garotos, você quem sabe: ou deixa no elas por elas, em panos quentes, ou terá que responder por agressão a dois menores. Tá ligado?

- Porra cara, ainda essa? Só me dei mal neste Natal.

- Não é uma questão de ser Natal ou qualquer outra época. Se você for um cara sacana, as pessoas serão sacanas com você. A felicidade do Natal é uma coisa artificial. As pessoas se dão presentes e fingem que gostam uma das outras, e fingem que se preocupam com os problemas dos outros, só durante uma única época do ano. O resto do ano inteiro ninguém presta. É briga, é assalto, é filho matando pai, é mulher matando marido, é patrão humilhando empregado. No Natal todo mundo esquece de tudo, é muita fantasia.

- Mas a minha mulher não me perdoou, nem no Natal!!! E eu comprei um presente lindo pra ela.

- Que bom. As pessoas não devem ser compradas. Se você pode comprar alguém no Natal, então só existe hipocrisia. Mas eu não tenho nada a ver com esse seu probleminha conjugal. Eu estou pensando seriamente em buscar aqueles garotos e pedir o depoimento deles sobre a sua agressão. Vai te dar uma boa dor de cabeça, vai precisar de advogado e tem que comparecer às audiências. Mas se você me der uma ajudinha, digamos que eu terei compaixão por você, e a polícia esquece que você bateu nas crianças. Ficamos todos felizes. É o espírito do Natal.

Fabrício deu o suborno ao policial, irritado, porém sem argumentos, e seguiu para ver como andavam os negócios.

Chegando à loja de produtos infantis localizada em uma região nobre da cidade, respirou aliviado.

- Pelo menos aqui eu tenho um pouco de felicidade no Natal. A loja está movimentada e o caixa está cheio.

Mas Fabrício foi olhando em volta aquilo tudo e duas coisas chamaram atenção: seus funcionários suados por usarem tocas de Natal como o frentista do posto de gasolina, e pessoas desesperadas pedindo descontos, promoções e financiamentos. Não gostou daquilo. Viu que a sua própria felicidade dependia da desgraça dos outros: homens e mulheres trabalhando em péssimas condições por uma esmola que ele pagava; e pais de família contraindo dívidas enormes para comprarem a alegria e o carinho de seus filhos em mais um Natal.

Colocou-se no lugar dos desesperados, por um tempo. Refletiu sobre as crueldades que fez com empregados, meninos de rua e sua esposa. Pensou sobre tudo e mandou escrever na porta da loja:

- Obrigado senhores clientes. Quando vocês compram presentes aqui, vocês me dão lucro, e o meu lucro gera empregos. Então faça muitas pessoas felizes neste Natal, façam-me rico e garantam pelo menos o emprego dos meus funcionários. O resto é conversa fiada!

Chamou a mais bonita de suas funcionárias, deu a ela o presente destinado à esposa, e chamou a garota para sair. Fechou as contas da loja, pagou aos funcionários, pediu desculpas pelo gorrinho quente na cabeça (prometeu que no próximo ano não haveria aquilo novamente) e, saindo de mãos dadas com a bela vendedora, disse:

- Feliz Natal e próspero Ano Novo para todos!!!!

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